sábado, 26 de março de 2011

"Inverneiras e brandas. A vida loba de Castro Laboreiro"


No Norte do país ainda há 20 famílias que mantêm a tradição de mudar de casa do Inverno para o Verão, separadas por 200 metros de altitude

Isalina vive há 68 anos entre inverneiras e brandas


Desta vez o dia dependia da vaca Viana. O animal desce vagaroso a rua de Cainheiras, uma das inverneiras de Castro Laboreiro, lugares que durante anos só eram habitados nos três meses de Inverno. Hoje já há duas famílias que ficam, mas as outras, por volta do dia 15 de Março mais coisa menos coisa, sobem para as brandas, acima dos 1000 metros de altitude, e com uma diferença de 6oC que se sente no primeiro sábado de quase Primavera. A vaca vai prenha, e ainda bem, tinham receio que parisse entretanto, conta Isalina Fernandes, 68 anos num emaranhado de português e galego. Em Padresouro, a terra de Verão onde as pernas já não a levam, pastam menos e crescem mais. Cada vitelo dá-lhes 600 euros e é o único rendimento que tiram à natureza semeada de batatas, couves e centeio.

Isalina nasceu numa inverneira. "Tenho quatro casas", desdenha da crise. "Somos ricos de terra." Veste preto. A cor usava-se no casamento e nunca mais se largava, por causa da responsabilidade. Isalina assim fez nos 40 anos que o marido andou emigrado em França, Arábia Saudita, Iraque, Argélia. Alecíades Rodrigues, 71, assiste do alto do morro. A mulher manda, a mulher tratou da filha, a mulher tratou do campo, geriu as poupanças até que ele voltou, há 12 anos.

Dizem muitas vezes "até que voltasse da escravatura da emigração", onde a humidade colava as camisas ao corpo e havia dias que mal se comia. Lá, para confundir patrões, os de Castro Laboreiro inventaram um dialecto. No "verbo", as batatas eram "terrenas" e o tabaco "macaio".

Ali, na raia do Parque Natural do Gerês, os animais continuam a obrigar 20 famílias (no início da década eram 80) à transumância. Os animais e a tradição, que os mais velhos não decidem onde gostariam de se fixar de vez. Enquanto uns não decidem, os outros deixam-se ir para não ficarem sozinhos, que os burlões que se fazem passar por funcionários da Segurança Social chegam cada vez mais àquele fim do mundo, que todos aprenderam a contrapor com "o princípio do mundo", retratado por Manoel de Oliveira no filme de 1997.

Isalina não tem essa sabedoria, mas guarda outras. Passa pouco das 9h e nas montanhas à volta - onde desenha com as lembranças e os dedos os caminhos do contrabando, o principal negócio da maior freguesia de Viana do Castelo depois das minas de volfrâmio que alimentaram as guerras - há vários incêndios. É normal? "Quando começa um, há logo dois ou três", respondem. O fogo que no Verão atrai as câmaras continua a servir para renovar os pastos e não há bombeiros a assistir.

"É o Natal na inverneira e a Páscoa na branda", os períodos que regulam a vida de Isalina, que partilha as duas casas com o marido, a filha e a irmã quatro anos mais nova e com cara de menina. As outras duas casas são dos animais. A mãe, que viveu até aos 92, criou seis filhos, "cada um de seu pai, e nunca nos deixou mágoas que a água não lavasse", respira. "Isto hoje não custa viver, custa é morrer."

A mudança já não é o que era. O ditado diz que antes ia até o gato, mas é só um ditado. As galinhas agarram-se pelas asas e enfiam-se numa caixa, os coelhos vão tapados num alguidar. A televisão tem uma pega, vão bebidas e comida e fecha-se o portão. O tractor e um Renault 9 substituem as pernas.

"Dantes não havia colesterol em Castro Laboreiro", conta a filha, Leonor, 45 anos, quando nos sentamos à mesa da casa, já na branda, de janelas abertas. Esta tem melhores condições e foi construída com o dinheiro da emigração, como todas as casas grandes da serra. A outra é baixa, de pedra, esta é feita de chapa, tem dois andares e vista privilegiada para o planalto, onde vive uma alcateia, há veados e cada vez mais turistas. A água vai buscar-se a um regato com seixos e musgo e bebe-se mesmo sem ser controlada. A luz e as estradas já chegaram ali há mais de 40 anos, conta Isalina, "com o nosso dinheiro e as nossas terras". E com a bênção do padre, que já morreu. Explicam que a neve, dantes, quando as estações eram mais separadas, crescia 80 centímetros na estrada e não se distinguiam os muros. "Dantes descíamos com os mortos às costas", lembra Alecíades. Os mortos até ao cemitério no lugar fixo de Castro Laboreiro, carregados por miúdos de 15 anos, cheios de histórias dos carabineiros da fronteira nos ouvidos. As raparigas levavam os rebanhos a pastar, todas as ovelhas do lugar juntas, e tremiam ao ouvir os buenos dias dos galegos. Queriam levá-las, à mais bonita, à ruiva. "Quem galego pouco emprego." À noite faziam--se bailaricos nos montes de pedra.

Matam dois porcos que dão carne para o ano, fumam chouriças, toucinho e todas as pernas. Cortam fatias de presunto como se fossem entremeada, que nos dão a comer com pão e laranjada. Agarram-se ao campo até aos 80, 90 anos, mas o sábado é tranquilo, explicam, sem dizer o u. "Os primeiros emigrantes de Castro Laboreiro partiram em 1816", repete Alecíades, lembrando os fragmentos da história que sabe. Há dois anos apareceu-lhes um primo de França que nunca tinham visto e confiaram depois de desconfiar, o primeiro instinto de todos os que vivem ali.

As inverneiras eram 18 e hoje são sete. As brandas eram 19 e hoje são seis. Os censos andam na rua, mas todos duvidam que ali vivam os 700 de 2001. Elisabete e Filipe, caras do turismo e facilitadores das conversas, ajudam com os números. Serão 500 habitantes, quando já foram 2 mil. Só há uma escola e 20 crianças - dantes a professora primária andava com a vida entre brandas e inverneiras. Onze aldeias já estão abandonadas, outras tornaram- -se lugares fixos: só nas Eiras, a branda mesmo abaixo de Padresouro, há 15 famílias que desistiram de mudar o ano passado. Arriscam que a tradição é única na Europa, pelo que têm ouvido: "Dez anos e acaba", admite Elisabete. Mas por Isalina não. Em Dezembro voltarão a descer. "A vida é loba", atira-nos.

Veja a reportagem vídeo em www.ionline.pt

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